Aquarela como terapia: aprendendo a abrir mão do controle com a pintura
A aquarela tem vida própria e se comporta como quer, enquanto eu tento aprender com a fluidez da água no papel

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No fim do ano passado, ganhei um estojo de aquarela de um amigo querido. Sempre gostei muito de pintar e me expressar por meio da arte, e fazia tempo que vinha namorando essa técnica à base de água e pigmentos coloridos. O perfeccionismo, entretanto, me perseguia na mesma medida que a vontade de me agarrar aos pincéis. Comecei a ver vários tutoriais no Youtube, tentando desvendar os mistérios necessários para pintar do jeito certo. Mas o que é jeito certo? Isso sequer existe?
Depois de umas pinceladas experimentais, os pincéis ficaram parados por um tempo, até que em meados de março, nas primeiras semanas de quarentena — quando as redes sociais pipocaram anúncios de atividades online gratuitas para fazer em casa — , resolvi fazer um desses cursos de aquarela para iniciantes, em um site que tinha liberado o acesso a todo o seu conteúdo. Foram umas três ou quatro aulas curtas para pintamos flores, inspirados em uma fotografia. Para minha surpresa, parecia tão… fácil? Onde estavam as regras?

A professora não era detalhista. Cada pincelada formava uma pétala, duas ou três eram suficientes para a formação de uma folha. Inspirada por essa experiência leve, tempos depois acompanhei algumas lives sobre aquarela do José Marconi, professor de design e ilustração na Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR) — onde eu estudo design gráfico. Em uma dessas aulas abertas do Marconi, fiz uma pergunta sobre como controlar melhor a maneira como a aquarela se espalhava no papel.
Foi aí que ele me surpreendeu dizendo que, para ele, a melhor parte da aquarela era não ter o controle. É ver a magia da tinta se espalhando na superfície de algodão, se encontrando com as outras tonalidades e criando formas que você não esperava. Para ele, é mais fácil usar a aquarela quando você abre mão do desejo de controle. Se você é uma pessoa controladora na vida, vai ter que trabalhar isso na hora da pintura também.
Deixando a vida fluir como a água
A beleza da aquarela está na maneira como os pigmentos se relacionam com a quantidade de água aplicada, e a água é uma substância que segue o próprio fluxo. Esses dias, fiquei tocada por um trecho de um livro que estou lendo — The Penelopiad, escrito por Margaret Atwood, publicado no Brasil como A odisseia de Penélope — , que retrata a natureza da água de maneira poética:
“Water does not resist. Water flows. When you plunge your hand into it, all you feel is a caress. Water is not a solid wall, it will not stop you. But water always goes where it wants to go, and nothing in the end can stand against it. Water is patient. Dripping water wears away a stone. Remember that, my child. Remember you are half water. If you can’t go through an obstacle, go around it. Water does” (The Penelopiad, Margaret Atwood)
Desde o ano passado, comecei a refletir mais profundamente sobre o meu desejo de controle sobre a realidade. Por muitas vezes, me sentia extremamente controladora, e isso me gerava sofrimento e angústias desnecessárias. Abrir mão do que projetamos para o futuro é um aprendizado. E nenhuma lição é melhor do que a que estamos tendo agora, em meio à pandemia. O vírus nos mostrou que, de uma hora para a outra, nossos planos podem ir por água abaixo. Nem tudo está em nossas mãos. E se abrir à fluidez e às surpresas da vida é algo maravilhoso. O que o mundo tem para nos oferecer é muito mais valioso do que podemos imaginar.

Agora, utilizo a aquarela de maneira mais leve. Com tinta, pincel e papel, abro mão da ilusão do controle. Tento aproveitar o momento como uma prática de contemplação do aqui e agora. Estou apenas no início dessa jornada — ainda tenho muitas ilustrações pela frente para fazer! Por enquanto, escolho uma foto ou imagem de inspiração e tento reproduzir de maneira livre. Não existe certo ou errado quando você decide que é tudo uma grande experimentação. A água colorida se movimenta pelo papel, mistura-se às outras cores, não comete erros: transforma o experimento em algo único.