Diário dos 14 dias de isolamento de uma pessoa com covid

Felizmente, o vírus só provocou sintomas leves em mim e na minha família. O peso emocional da pandemia, entretanto, é grande

Stephanie D'Ornelas
13 min readDec 24, 2020
Em março ou abril comecei um caderno de colagens para fazer enquanto estivesse em casa, em quarentena (quando ainda imaginava que a pandemia duraria apenas alguns meses, como a maioria das pessoas). Fotos: Stephanie D’Ornelas

Dia 1 | Quarta-feira

Eu tinha certeza que não podia estar com covid. Quando recebi o email dizendo “segue o resultado do seu exame para COVID-19, o qual resultou em positivo”, tive que reler algumas vezes pra confirmar que eu não tinha interpretado errado. Eu já estou há mais de duas semanas fazendo home office, e a única vez que eu saí de casa nesse período foi para ir no meu trabalho entregar um documento. Passei no máximo uns 15 minutos lá, todos de máscara, janelas abertas. Conversei com uma pessoa que, como eu descobri uma semana depois, estava com covid. Mas a conversa foi tão rápida que as chances de eu ter contraído eram muito baixas, na minha cabeça. Pois bem, a pessoa me avisou que descobriu estar com covid na última segunda, na terça (ontem) fiz o teste RT-PCR e hoje recebi o email confirmando que eu também estou com o vírus.

Já faz uns dias que eu sinto alguns sintomas: estou com um pouco de dor de garganta (mas isso começou há mais de duas semanas, então acho que é apenas uma coincidência) e comecei a sentir a respiração meio curta, mas pensava que isso devia ser coisa da minha cabeça. Também senti dor de cabeça que persistiu por uns dois dias, mas como passou eu não dei muita importância. De maneira geral, estou me sentindo muito saudável. Isso é um alívio, mas meu maior receio é outro: eu moro com minha família e tenho medo de ter passado para eles. Desde segunda, antes do teste, comecei a usar máscara em casa e me isolar, agora resta saber se isso foi suficiente. Meus pais e meu irmão marcaram o teste deles para amanhã.

Dia 2 | Quinta-feira

Ontem foi meio difícil dormir, eu estava preocupada com minha respiração mais pesada, porém estou medindo a saturação com o oxímetro (felizmente meu pai comprou uns meses atrás, por segurança) e a quantidade de oxigênio do meu corpo está normal. Acordei me sentindo melhor, sem me preocupar muito com isso. Sei que ficar pensando na respiração pode desencadear ansiedade, e esta também pode causar falta de ar. Meu irmão e minha mãe fizeram o teste hoje pela manhã, meu pai fará à tarde e minha irmã testará amanhã. Meus irmãos estão com alguns sintomas leves, e também isolados, cada um sem sair do seu quarto e usando um banheiro diferente. Minha maior preocupação no momento são meus pais, principalmente porque meu pai que tem alguns problemas de saúde.

Usando oxímetro todos os dias para garantir que está tudo bem.

Várias pessoas do meu trabalho também estão com covid, então acabamos trocando relatos sobre como estamos nos sentindo. Um está ajudando o outro, mesmo a distância, oferecendo palavras solidárias e positivas. Isso ajuda muito! Ter amigos maravilhosos dando suporte também torna essa situação um pouco mais leve. As principais orientações para quem está com a covid (sem sintomas que exijam atendimento médico) são permanecer em isolamento, com o cômodo bem ventilado, beber muita água e repousar. Estou me hidratando muito, me alimentando bem e me distraio assistindo séries, lendo, jogando, dormindo. Tive a ideia de escrever aqui todos os dias também. Creio que pode ser útil para outras pessoas que passem por essa situação e acho que vai ser importante ler isso depois, sabendo que foi um momento difícil, mas que passou.

Dia 3 | Sexta-feira

Hoje saiu o resultado do exame do meu pai e do meu irmão (negativo) e da minha mãe (positivo). Achamos que o resultado do meu pai pode ser um falso-negativo, já que até poucos dias atrás, antes de todos de casa se isolarem em quartos diferentes, ele estava dormindo junto com a minha mãe, compartilhando o ar do mesmo ambiente. A minha irmã fez o teste hoje, então o resultado dela deve sair amanhã. O principal, agora, é que todos estão se sentindo bem, sem nenhum sintoma preocupante. Essa situação é extremamente difícil psicologicamente, entretanto. Eu sinto medo, principalmente pelos meus pais. Eu só quero que tudo isso acabe logo e que a gente possa passar por essa com saúde. Que os sintomas não evoluam e que logo a gente possa estar junto, conversando ao redor da mesa da cozinha sem máscara e sem medo.

Desde março, eu vinha seguindo um isolamento domiciliar rigoroso: passei quase sete meses sem sair de casa (a não ser uma ou duas idas na farmácia e alguns passeios de carro, só pra ver a cidade), trabalhando de maneira remota. A partir de outubro, tive que deixar o home office e voltar a trabalhar de maneira presencial, por exigência da empresa. Eu tive muito medo, porque estava conseguindo me manter isolada e protegida, o que é um grande privilégio no Brasil. Por um lado, foi bom rever meus colegas de trabalho em um ambiente diferente do que eu vivia nos últimos meses — quem vem seguindo a quarentena de maneira rigorosa sabe o quanto ela pesa depois de tanto tempo. Por outro, eu nunca conseguia ficar realmente tranquila, mesmo que eu não tirasse a máscara nem para tomar água.

No fim de novembro, os casos de covid no meu trabalho começaram a aumentar e nos liberaram para o trabalho remoto novamente. Mas, no início de dezembro (como relatei no primeiro dia deste diário) tive que ir para o trabalho entregar um documento, e mesmo com todos usando máscara e eu ter passado pouquíssimo tempo lá, me infectei. Tenho quase 100% de certeza da infecção lá porque foi o único lugar em que estive além da minha casa nas últimas semanas. Isso me levou a refletir sobre como, mesmo que você se cuide muito, a partir do momento em que você tem contato com outras pessoas, existe um risco que deve ser considerado.

Até agora eu estava usando apenas máscaras de pano, três camadas e antivirais, mas entendendo o tamanho do risco mesmo em situações que parecem menos inseguras, eu não sairia mais de casa sem usar máscaras cirúrgicas ou a PFF2 — tenho lido sobre esse assunto neste perfil do Twitter.

Dia 4 | Sábado

Ontem demorei um pouco para conseguir dormir porque estava sentindo minha respiração um pouco pesada e isso me deixou com medo, mas hoje estou me sentindo bem. O resultado do teste da minha irmã não saiu, então ela também segue isolada por garantia. Meu pai e irmão estão preparando as refeições e usam máscara o tempo todo. Nesses últimos dias, pensei muito sobre como eu não teria feito o teste se a pessoa que tive contato no trabalho não tivesse me enviado mensagem falando que ela testou positivo. Eu não faria a mínima ideia de que estou com covid, pensaria que os sintomas leves que sinto teriam outro motivo, e que supor que era o coronavírus seria paranoia minha.

Como eu disse, a não ser pelo trabalho, eu mantive uma quarentena bem restrita. E se eu estivesse indo para restaurantes ou bares, por exemplo? Mesmo “seguindo todos os protocolos de segurança”, no momento em que eu estivesse sem máscara bebendo ou comendo, eu poderia estar infectando outras pessoas e não faria a mínima ideia disso, por estar me sentindo saudável. É por isso que essas atividades são consideradas de alto risco, e imagino quantas milhares de pessoas não estão espalhando o vírus por aí sem saber. O Natal está chegando, é uma época do ano que eu normalmente gosto muito, mas neste ano sinto apenas medo quando penso na quantidade de pessoas que vão se reunir e em como a transmissão aumentará a partir disso.

Dia 5 | Domingo

Hoje estou me sentindo bem, levemente cansada apenas. O resultado da minha irmã deu negativo, mas achamos que é falso-negativo porque infelizmente ela está apresentando sintomas ligados à covid, como diarreia e dor de cabeça. Provavelmente fará uma consulta por telemedicina amanhã pelo nosso plano de saúde (estamos tentando hoje, mas sem sucesso). Ela continua totalmente isolada no quarto dela, assim como eu e a minha mãe nos nossos. Meu pai e meu irmão nos trazem tudo o que precisamos, deixando sempre do lado de fora do quarto para pegarmos. Meu pai toma muitos cuidados para permanecermos saudáveis também, sempre preparando sucos e alimentos nutritivos. Ele até construiu uma mesinha para a minha mãe deixar na sacada do quarto em que ela está para poder bordar e usar de apoio nesses dias de isolamento.

Estou evitando ler as notícias sobre a pandemia no Brasil porque isso tem me feito mal. Parece causar um sentimento ainda pior agora, trazendo muito medo, conhecendo tantas pessoas com covid. Os números só aumentam e tudo indica que o fim deste ano e o início do próximo será muito difícil no país. Apesar de evitar ficar pensando nisso, hoje acabei lendo esta matéria do Uol sobre como jovens estão se aglomerando nas noites de São Paulo e não tenho nem como dizer que fico surpresa, mas não deixo de ficar profundamente triste vendo o descaso com a situação. Eu não tenho dúvida de que grande parte dos entrevistados, aglomerada nos bares de Pinheiros, tem plena consciência da gravidade do que está acontecendo no momento, mas escolhem ser irresponsáveis e colocar a si mesmos e aos outros em risco.

Dia 6 | Segunda-feira

São quase 21 horas agora, e eu estou com dor de cabeça desde o meio da tarde. Não é uma dor forte, mas tirei um cochilo, tomei um remédio — dipirona, que é o que a médica me recomendou em caso de dor — e não passou. Hoje minha irmã fez uma teleconsulta e a médica que a atendeu acredita que ela realmente esteja com covid, mas isso só seria identificado no exame se ela tivesse esperado passar mais dias desde início dos sintomas. Agora é esperar, acompanhar e torcer para que não evoluam. Este ano está pesado demais, eu só quero que ele acabe e que o governo federal comece a agir com seriedade para combater a pandemia. É emocionante ver as pessoas começando a ser vacinadas nos outros países, mas isso também lembra o quanto o Brasil está atrasado por ter entrado num poço de negacionismo e retrocesso. Eu estou muito cansada.

Dia 7 | Terça-feira

Estou bem hoje, apesar de sentir um pouco de fraqueza e cansaço. Cheguei à metade do período de isolamento e estou me sentindo muito agradecida pelos sintomas não terem evoluído em mim nem em qualquer outra pessoa da minha família. Apesar de ser meio agoniante não sair do quarto por tanto tempo, esse isolamento não tem sido tão difícil para mim, porque normalmente já passo bastante tempo no meu quarto. Eu e minha família estamos fazendo chamadas de vídeo todas as noites e isso tem sido ótimo para que ninguém se sinta sozinho. Tenho aproveitado esses últimos dias para fazer algumas artes. Ganhei uma casa de montar em julho mas são tantas peças e detalhes que eu ficava me enrolando para terminar, e agora que tenho várias horas livres tenho me dedicado a isso. É algo divertido e o tempo acaba passando mais rápido!

A caixa fechada, um mini sofá e outras miudezas que exigem paciência na hora de montar.

Dia 8 | Quarta-feira

Hoje estou me sentindo bem e saudável, com mais motivação do que ontem, quando eu tive uns momentos em que senti fraqueza e não tive vontade de sair da cama. Ontem à noite senti minha mão formigando — um dos sintomas possíveis da covid — , durou pouco tempo, mas me deixou com um pouco receosa. Falando em sintomas, estou feliz que não tive perda de olfato ou alterações no paladar, que era algo que eu temia depois de ler tantos relatos e notícias sobre o assunto. Estou escrevendo um texto de gastronomia, é um freela pra uma revista, e hoje estou conseguindo me concentrar melhor do que ontem. Estar produzindo também me ajuda a permanecer ativa e pensar em coisas diferentes, então isso tem sido bom!

Dia 9 | Quinta-feira

A pandemia tem um gosto muito amargo. Hoje, dia 17 de dezembro, o Brasil voltou a registrar mais de mil mortes diárias, depois de meses. Cada vez mais conhecidos estão infectados. Não temos um plano de vacinação sério. A situação está piorando e não duvido que será pior do que o que o pico que passamos em julho. Eu quero manter a positividade pelo bem da minha saúde mental, mas têm dias que isso é muito difícil. Todos os dias eu oro para que as pessoas tenham mais consciência e que os governantes sejam mais responsáveis com a saúde pública. Eu só queria uma presidente como a da Nova Zelândia, será que é pedir muito?

Dia 10 | Sexta-feira

Hoje não tive nenhum sintoma, estou me sentindo bem, apenas cansada de não sair do quarto e de toda a situação. Fiquei com vontade de fazer alguma arte com papel e vi tutoriais no YouTube para fazer uma árvore de Natal e um laço. Me diverti fazendo essas dobraduras!

Dia 11 | Sábado

Felizmente os 14 dias de isolamento estão terminando! Mas ainda não sei se depois disso posso me considerar 100% livre do vírus e ficar sem máscara em casa, em contato com a minha família, com tranquilidade. Estou pensando em talvez fazer um novo teste PCR. Vi algumas matérias com especialistas dizendo que é desnecessário repetir o teste porque você não transmite mais, mas alguns estudos dizendo que é possível continuar transmitindo. É tudo muito novo e aparentemente nem especialistas tem certezas sobre alguns aspectos. De qualquer maneira, na semana que vem meu pai e irmãos, que testaram negativo, vão fazer o exame sorológico para saber se desenvolveram anticorpos.

Atualização: vi esse vídeo e achei bem elucidativo — Quando uma pessoa infectada com covid-19 deixa de ser contagiosa? — YouTube

Dia 12 | Domingo

Hoje uma médica do meu plano de saúde ligou para saber como eu estava, eu disse que estou sem sintomas e ela disse que eu não preciso fazer o PCR novamente, que se eu não apresentar sintomas respiratórios por pelo menos três dias seguidos após o período de isolamento posso ficar tranquila. Faltam poucos dias do Natal, e acredito que poderei estar reunida com a minha família (apenas a nuclear, que mora comigo). Estou feliz por isso. Infelizmente não será possível ver meus avós e meus outros familiares que vivem no interior, como acontece em todos os anos, mas é por uma causa maior! Espero que no ano que vem possamos estar todos juntos, vacinados e saudáveis!

Dia 13 | Segunda-feira

Hoje é o 13º dia deste diário, mas já se passaram 14 dias desde que eu fiz o teste. A médica que me acompanha já me deu alta, mas acho que ficarei em isolamento até amanhã para garantir. Eu, meus pais e irmãos estávamos planejando passar o Natal em uma casa isolada em uma chácara, e iríamos viajar depois de amanhã. Com as confirmações da covid cancelamos os planos, mesmo sabendo que o período de isolamento já teria terminado até lá, principalmente porque não sabíamos como os sintomas iriam se desenvolver. O mais importante agora é garantir a saúde de todos. Será um Natal diferente, sem reunir vários amigos e familiares que amamos, mas temos que abrir mão deste momento agora para garantir que possamos estar reunidos de novo no futuro.

Dia 14 | Terça-feira

Hoje pela manhã meu pai e irmãos fizeram o teste sorológico e o resultado saiu algumas horas depois, o mesmo para todos: não reagente. Isso significa que eles não foram infectados pelo coronavírus ou foram infectados e o corpo não produziu anticorpos o suficiente para serem detectados pelo teste. Como já se passaram mais de oito dias desde o início dos sintomas, acreditamos que eles realmente não tenham pegado corona, mesmo que todos nós moremos juntos. Isso foi uma grande surpresa, já que achávamos que essa era uma situação improvável. Agora, resta agradecer por isso, e por eu e minha mãe não termos desenvolvido nenhum sintoma grave!

Dia 15 | Quarta-feira

Hoje finalmente saí do meu quarto. Resolvemos continuar usando máscara aqui em casa até o fim desta semana, para dar uma margem de segurança. Apesar de continuar dentro de casa, só de sair do quarto já sinto o alívio para a mente: poder ver minha família novamente, fazer as refeições longe da minha cama, fazer uma boa faxina no cômodo em que estive trancada por 15 dias. É como se eu fosse uma nova pessoa. Passar por tudo isso foi uma experiência estranha. Em alguns dias, principalmente nos primeiros, tive medo. Mas cada novo dia que passava sem que eu e meus familiares desenvolvessem sintomas era uma grande vitória e me dava mais confiança na recuperação. As pessoas que trabalham comigo que estavam infectadas também se recuperaram. Sou muito grata a Deus por tudo isso!

Aqui em casa, vamos continuar nos cuidando como antes: evitando sair (até porque a situação em Curitiba, onde moramos, está muito complicada) e usando máscara sempre que for necessário deixar o isolamento. Para mim, essa infecção me serviu de alerta: em primeiro lugar, me mostrou como é fácil se contaminar, mesmo em situações menos inseguras; em segundo, foi a prova do que todos os cientistas defendem sobre como a máscara pode fazer toda a diferença. Provavelmente, a carga viral que eu recebi foi bem baixa porque eu estava usando máscara, e isso fez com que eu e minha mãe tivéssemos um quadro leve.

O Natal está chegando e eu não poderia ganhar nenhum presente maior do que o que eu recebi ao fim desta quinzena, que é toda a minha família com saúde. Este ano foi pesado para todos — ainda mais para quem enfrentou e está enfrentando o luto — mas precisamos aguentar mais um pouco. Que 2021 traga a vacina, e com ela pelo menos um pouquinho da normalidade de volta com segurança. Cuidemos de nós e dos nossos. Tudo isso vai passar!

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Stephanie D'Ornelas

brazilian journalist writing about books, art, cinema and more | jornalista curiosa sobre o mundo. aqui escrevo sobre livros, arte, filmes e devaneios