Nutshell, de Ian McEwan | Resenha
Recentemente li “Nutshell”, de Ian McEwan, lançado no Brasil como “Enclausurado”, pela Companhia das Letras. A escolha por essa leitura não foi ao acaso: o livro, lançado em 2016, foi o primeiro selecionado para o clube de leitura e discussão de obras literárias em inglês que estou participando, mediado pela maravilhosa Ana Carolina Torquato, que é mestre em Estudos Literários pela Universidade de Sheffield e, em breve, doutora nessa mesma área pela Universidade Federal do Paraná.
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Nos últimos tempos não tenho tido vontade de ler livros demasiadamente complexos ou densos (talvez porque o mundo em meio à pandemia já esteja complicado demais), então Nutshell veio em boa hora, pois é uma leitura bem leve e divertida, embora a história gire em torno de temas tensos como vingança, traição e assassinato. É fácil entender a escolha do autor por esses assuntos: este livro é uma releitura de Hamlet, uma das mais famosas tragédias de William Shakespeare, e está cheio de referências a outras obras shakespearianas.
O narrador é inusual: um feto, nas últimas semanas de formação dentro do ventre materno. Como um Memória Póstumas de Brás Cubas às avessas — enquanto este é narrado por um “defunto-autor”, cuja carne já foi devorada pelos vermes, Nutshell é narrado por alguém que ainda não nasceu. O feto é extremamente sarcástico, culto e inteligente, além de muito engraçado. Apesar de não ver nada do que acontece para além do corpo de sua mãe, ele é um ouvinte atento, dos podcasts que Trudy, sua mãe, escuta até as conversas sinistras que envolvem o plano de sua progenitora para assassinar o marido, John Cairncross, em conluio com seu amante, Claude — que é nada menos do que o tio do bebê.
As partes mais engraçadas do livro, para mim, são as que o bebê relata sua experiência com o álcool — mesmo grávida, Trudy não deixa de apreciar bons vinhos com seu amante, e é de seu ventre que seu filho narra suas primeiras experiências com a embriaguez. Ele se torna praticamente um sommelier.
“I know that alcohol will lower my intelligence. It lowers everybody’s intelligence. But oh, a joyous, blushful Pinot Noir, or a gooseberried Sauvignon, sets me turning and tumbling across my secret sea, reeling off the walls of my castle, the bouncy castle that is my home. Or so it did when I had more space. Now I take my pleasures sedately, and by the second glass my speculations bloom with that licence whose name is poetry.”
Ler Nutshell me deixou morrendo de vontade de ler Hamlet. Inclusive, comprei esta edição linda da Ubu, que traz 21 xilogravuras criadas por Edward Gordon Craig para a edição clássica de Hamlet publicada em 1930 pela Cranach Press. Estou aguardando ansiosamente a chegada para começar a ler! Para quem gosta de Shakespeare, outra dica para se aprofundar neste mundo é o podcast Shakespeare Unlimited, que traz várias discussões sobre a obra shakespeariana, indicação da Ana Carolina Torquato durante nossos encontros.
Enclausurados estamos
Enquanto lia o livro, pensei no paralelo entre o bebê enclausurado no corpo da mãe e o isolamento social da pandemia. O narrador-feto descreve ao longo da obra sua sensação de impotência por não poder alterar os rumos do que ocorre no mundo exterior. Estou há quatro meses em casa, em quarentena — tenho o privilégio de poder trabalhar de maneira remota — e, por muitas vezes enquanto lia o livro, me identificava com a impossibilidade de ação do feto. Protegida, em casa, mas sem enxergar maneiras de alterar o mundo para além de mim.
Os dilemas da vida real, fora da “casca de noz”, são muitos: políticas ineficientes para combater o avanço da covid-19 no Brasil, milhões de pessoas perdendo suas fontes de renda, milhares de mortes que poderiam ser evitadas. Com o tempo, percebi que me cobrar ou sofrer pelo que não está em minhas mãos não mudaria a realidade, e que seria muito mais eficiente pensar em como posso ajudar quem está próximo de mim. E, voltando ao livro, em certo momento, até mesmo o bebê-Hamlet mostra que na verdade sim, pode alterar sua realidade. Para mim, isso representou esperança. De certa maneira, Nutshell relata uma história de isolamento, e recomendo muito a leitura (também) para este momento!
Highlights
Alguns trechos de Nutshell que me marcaram!
“God said, Let there be pain. And there was poetry. Eventually.”
“There are not many options for the evening that follows an afternoon of drinking. Only two in fact: remorse, or more drinking and then remorse.”
“No one exclaims at the moment of one’s dazzling coming-out, It’s a person! Instead: It’s a girl, It’s a boy. Pink or blue — a minimal improvement on Henry Ford’s offer of cars of any colour so long as they were black. Only two sexes. I was disappointed. If human bodies, minds, fates are so complex, if we are free like no other mammal, why limit the range?”