O Caminho do Artista, o livro que me incentiva a escrever todos os dias
Desde pequena eu sempre fui apaixonada pela escrita, mas nunca tive o hábito de escrever diários. Eu escrevia nas aulas de português, quando o professor pedia uma redação, ou quando estava muito inspirada e tinha epifanias que viravam poemas, contos ou inícios de livros que eram abandonados depois de algumas páginas de caderno. Logo que entrei na faculdade de Jornalismo, em 2010, comecei a fazer estágios na área. Depois passei a atuar oficialmente como jornalista, e neste período de uma década a escrita fez parte da minha rotina quase todos os dias, mas sempre como ofício — seja escrevendo para sites, jornais, revistas, redes sociais… Durante a quarentena, pela primeira vez na vida passei a escrever diariamente não para os outros, mas para mim mesma.
O Caminho do Artista
Tudo começou como um exercício desse livro de capa colorida, O Caminho do Artista, de Julia Cameron, considerado por muitos como “a bíblia da criatividade”. Quando, há algum tempo, ganhei este livro de uma amiga, não fazia ideia do que ele se tratava. No início do isolamento social, em meados de março, comecei a folheá-lo pela primeira vez, e parecia o livro perfeito para a longa quarentena que se desenhava à frente: o Caminho do Artista é um programa de desbloqueio artístico com duração de três meses. A cada semana, você lê um capítulo e faz seus respectivos exercícios. Duas dessas tarefas são fixas ao longo de todo o trimestre: as “páginas matinais” e o “encontro com o artista”.
Mimando seu lado artístico
O encontro com o artista é um momento semanal que você deve reservar apenas para você, com cerca de duas horas de duração, para “mimar” seu artista — para a Cameron, seu artista é como uma criança que precisa ser mimada.
Toda criança é artista. O problema é como continuar artista depois de crescer. (Pablo Picasso)
É preciso passar tempos a sós com a sua criança-artista para nutri-la com novas ideias. Alguns dos exemplos de encontros que a Cameron sugere é fazer uma longa caminhada na natureza, ir a uma galeria de arte, visitar um bairro em que você possa experimentar e conhecer coisas novas. O mais importante é que a atividade seja divertida! Eu gostava muito de fazer esse tipo de coisa sozinha, mas com a pandemia, acabei tendo que pensar em como fazer esses encontros criativos comigo mesma dentro de casa. Algumas das coisas que eu fiz por aqui foram pintura em aquarela, ver filmes que estavam na minha lista há muito tempo e dançar sozinha no quarto. :)
A criação de algo novo não é realizado pelo intelecto, mas pelo instinto de brincar, agindo por uma necessidade interior. A mente criativa brinca com os objetos que ama. (C. G. Jung)
A ideia desses encontros é escutar o que seu artista quer, criar um relacionamento mais íntimo com ele. Nesses momentos de relaxamento e descontração, seu artista pode te sussurrar soluções para os problemas e preocupações que você enumera nas páginas matinais — vou falar sobre elas na sequência.
Durante os períodos de relaxamento após uma atividade intelectual concentrada, a mente intuitiva parece dominar e pode produzir as descobertas repentinas iluminadoras que dão tanta alegria e deleite. (Fritjof Capra)
As páginas matinais
As páginas matinais são um exercício diário. Cameron propõe que você escreva três páginas de tudo que vem a sua cabeça logo depois de acordar. A ideia não é criar algo esteticamente incrível, não é escrever uma obra-prima. Apenas colocar tudo o que se passa por dentro de você para o papel. Qualquer pequena preocupação. Qualquer devaneio. As frases não precisam se encadear de maneira lógica. Escreva num fluxo de consciência, sem se preocupar com a coerência. “Hoje tenho que limpar meu banheiro sem falta. Para o almoço, pensei em fritar batata-frita. Ainda estou magoada com a Joana…”, etc, etc. A autora sugere que você acorde meia hora mais cedo diariamente para fazer isso, como um ritual.
No início achei difícil escrever três páginas (escrevo em um caderno de tamanho A5). Com o tempo fui pegando o jeito, mas mesmo assim há dias em que demoro bastante para chegar ao fim das páginas. Em alguns dias eu simplesmente escrevi menos, em outros fui deixando para escrever mais tarde e, engolida pelas tarefas do dia, não escrevi. E foi então que comecei a sentir falta da escrita quando não fazia minhas páginas diárias. Escrever se tornou viciante. Sinto que o dia até começa melhor depois das páginas matinais. É uma maneira de identificar tudo o que estou sentindo, listar tudo o que quero fazer no dia. Em muitos dias acabo escrevendo à tarde ou à noite, mas realmente sinto que a escrita rende mais quando consigo me dedicar a isso pela manhã.
Escrever frases desconexas pode parecer uma tarefa sem sentido no início da jornada. Mas ao longo dela, passei a enxergar essa atividade como algo meditativo. Quando me sinto realmente conectada à escrita, esvazio minha mente de tudo. Me sinto mais leve vendo as minhas preocupações simplificadas e listadas no papel. Escrevendo entendo melhor o que estou sentindo, o que eu desejo. Com o passar dos dias, percebo quais são os assuntos mais frequentes nas páginas. Quando você escreve sobre um problema todos os dias, naturalmente seu próximo passo será pensar em soluções.
As páginas matinais mapeiam o nosso interior. Sem elas, nossos sonhos podem permanecer como terra incognita. Sei que comigo foi assim. Ao usá-las, a luz da descoberta se une ao poder para promover uma mudança significativa. É muito difícil continuar reclamando de uma situação dia após dia, mês após mês, sem ser movido a tomar uma atitude construtiva para alterá-la. As páginas nos levam para além do desespero e em direção a soluções que antes não sonhávamos possíveis. (O Caminho do Artista, página 40)
As páginas matinais também são sobre manter uma rotina e disciplina. A Cameron lembra seus leitores que os artistas não nascem “iluminados”. As grandes ideias não chegam sem um trabalho árduo por trás delas.
À medida que você vai se recuperando, também fica mais natural ter fé em seu criador e no criador que existe dentro de si. Você aprenderá que, na verdade, é mais fácil escrever do que não escrever, pintar do que não pintar, e assim por diante. Você aprenderá a apreciar a canalização de energia criativa e deixar de lado a necessidade de controlar o resultado. Você descobrirá a alegria de praticar a sua criatividade. O processo, não o produto, irá se tornar o seu foco. (O Caminho do Artista, página 75)
Percebi outros benefícios com a escrita diária além de identificar melhor minhas emoções, desejos e preocupações (o que já é muita coisa!). Escrever é como um exercício de alongamento: quanto mais você se alonga, mais fácil serão esses exercícios para o seu corpo ao longo dos dias e mais longe você chegará. Escrever todos os dias torna a prática da escrita cada vez mais fácil e natural. Sinto que tenho menos bloqueios com a escrita desde que comecei a fazer as páginas matinais, as palavras fluem cada vez mais facilmente. Até para me comunicar verbalmente, consigo articular e organizar melhor minhas ideias.
Eu ainda não terminei de ler O Caminho do Artista (estou na sétima semana), mas esse livro já me beneficiou muito e tem sido um maravilhoso exercício de quarentena. Passar os dias em casa não nos impede de viajar pelo vasto mundo que é o nosso interior. Indico essa obra para todos que tenham vontade de investigar e incentivar a própria criatividade — e isso independe do que você faz da vida, não é necessário seguir uma carreira artística para ler esse livro. Todos podem se desenvolver quando trabalham com o poder da criação em suas vidas.
Para mais reflexões sobre o Caminho do Artista: um Instagram e um podcast
Esses dias ouvi um episódio do podcast que não conhecia, o Meteora. Nele, as apresentadoras Cris Guterres e Renata Hilário batem um papo com o rapper Rashid sobre criatividade (você pode ouvir aqui). Comecei a ouvir sem pretensão após a indicação do Mamilos — podcast que acompanho semanalmente há anos — , e qual foi a minha surpresa ao ver que o episódio era todo focado nas experiências de cada uma das pessoas presentes com O Caminho do Artista! As reflexões da conversa me inspiraram muito.
Outra mídia interessante para consumir conteúdos reflexivos gerados a partir d’O Caminho do Artista é o perfil do Instagram @voa__voa, criado pela jornalista Sabrina Abreu e pela artista visual Lara Dias. Nele, são realizadas conversas semanais inspiradas no livro. No início da obra de Cameron, ela sugere que você leia O Caminho do Artista em grupo, se quiser um incentivo a mais para fazer as atividades. Nem sempre isso é possível — eu mesma estou lendo sozinha — mas consumir conteúdos de outras pessoas com relação à obra é outra maneira de tornar a experiência ainda mais rica.